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Literatura 

Contos populares 

     A literatura popular haitiana traz aspectos culturais relevantes e constitui o trabalho de pesquisa e  produção dos estudantes no primeiro semestre de 2016.

     Conheça mais sobre os contos populares produzidos pelos alunos do curso Português para Estrangeiros:

Bouki et malice
Os ovos da Pata

             Era uma vez uma Pata que ponhava, ponhava grandes ovos brancos. Ela ponhava, ponhava tantos ovos grandes que, certo dia, seu ninho estava cheio de ovos brancos, quase transbordando. Um dia, a Pata teve que se ausentar e deixar seu ninho sozinho. Durante sua ausência, o Malice[1], que é um homem muito inteligente, descobriu o ninho e roubou um ovo, para comer.

            Bouki, que é glutão e bobo, descobriu o ninho também, então, roubou e comeu todos os ovos que pode.

            De volta, a pata encontrou seu ninho vazio. Ela ficou muito brava e gritou:

 - Não pode ser!! Eu vou ficar ao lado do rio pra interrogar todos que virão tomar água. Entre todos que tem sede acharei bem quem roubou meus ovos, porque tanta comida dá sede.

            Em seguida, um boi veio beber, depois um porco, um jacaré e um cabrito:

-Boi, Boi, Boi o que você comeu pra estar com tanta sede?

-Muhhhh Muhhhhhhhhhh, cascas de bananas!

- Cabrito, Cabrito, Cabrito, o que você comeu pra estar com tanta sede?

- Bé bé bé, grama da Guiné.

- Porco, porco, o que você comeu pra estar com tanta  sede?

- Groin groing groin, um monte de gordura.

- Jacaré, Jacaré, o que você comeu pra estar com tanta sede?

-Fuit fuit fuitttt, duas ou três pequenas moscas.

            Veio então o Malice, o malandro, em seguida o Bouki, o glutão, os dois iam tomar água.

- Malice, Malice, Malice, o que você comeu pra estar com tanta sede?

-Opa, opa, opa, comi hareng defumado[2]

-Bouki, Bouki, Bouki, o que você comeu pra estar com tanta sede?

- Ha ha ha, eu comi seus ovos, Pata. Estavam deliciosos!

            Quando a pata ouviu o que Bouki respondeu, ela ficou enfurecida e bateu forte nele com seu bico. Ela bateu, bateu, bateu tanto que o Bouki morreu de tanto levar bicadas. Morreu porque apanhou muito, mas a fome de um glutão, essa nunca morre.

 

[1] Bouki e Malice são dois personagens da literatura popular haitiana. Bouki é sempre bobo e ingênuo, Malice é sempre esperto e tira proveito de Bouki.

[2]  O hareng  (arenque, em português)é uma espécie de pequenos peixes que constituem pratos típicos do Haiti. Assemelha-se à sardinha que temos no Brasil.

Janot, o cozinheiro do rei

            Durante um almoço do rei e de sua esposa, ele contou que fazia muito frio na montanha La Ferière[1], onde tinha ido, naquele dia, para supervisionar a construção de sua Citadela. Janot, o cozinheiro, respondeu que não fazia muito frio lá.

- Se um homem ficar lá em cima da montanha, a noite inteira sem roupa ou sem nenhuma fonte de calor, ele vai morrer de frio – afirmou o rei.

- Oh, não! – insistiu Janot- não é muito frio.

- Mas quem é você para contradizer o seu rei? Essa noite você vai ficar em cima dessa montanha, sem roupas, sem fogareiro, até o dia seguinte. Se você ficar vivo até o amanhecer, eu te darei uma recompensa, 100 hectares da minha terra mais produtiva, porém, se você morrer, e é isso que espero que aconteça, escreveremos no seu túmulo “Aqui está o idiota que contradisse seu rei”

            Na mesma noite, dois guardas acompanharam Janot até em cima da montanha. Ele se despiu e gritou bem alto:

-Vocês vão ver que não faz nada de frio aqui!

            Janot começou a mover seu corpo de um lado para o outro enquanto o sol se punha.

- Por que você está tremendo assim? – perguntaram os guardas.

- Para esquentar um pouco o corpo – respondeu Janot, batendo os dentes.

- Por que você está batendo os dentes?

- Para romper o silêncio – contestou Janot, com lágrimas nos olhos.

- Por que você está chorando?

- Eu choro pela morte da minha mãe - respondeu o pobre homem, tapando as costas.

- Por que você está tapando as costas?

- Meu galo de estimação faz isso quando está se sentindo bem e feliz – respondeu, antes de desmaiar.

            Os guardas pegaram o corpo dele, carregaram em cima de um cavalo e levaram ao palácio.

- Aqui está meu estúpido cozinheiro, morto, como eu esperava – disse o rei.

- Eu não estou morto – respondeu Janot, abrindo os olhos- eu estava descansando. Para falar a verdade pra vocês, nem faz frio lá em cima. Eu passei meu tempo olhando as estrelas, as luzes do palácio San Souci[2]...

- Ah! São essas luzes, as chamar que iluminam San Souci que esquentaram você, por isso perdeu a aposta!

- Meu rei, as luzes do seu palácio ficam muito longe da Citadela, como elas poderiam me esquentar? – questionou Janot.

- Não insiste, você não respeitou as regras, por isso não terá os 100 hectares da terra! Jamais!

            Na mesma noite o rei e a esposa se sentaram na mesa da sala do palácio de San Souci, esperando por muito tempo a janta. Depois de várias horas, Janot entrou na sala dizendo que a janta não estava preparada.

            O rei levantou e foi na cozinha. Quando chegou, viu a panela num outro quarto, bem longe do fogo.

-O que é isso, idiota??? – Questionou, furioso

- Paciência, meu rei. A panela está um pouco longe. Se eu que estava na Citadela pude me esquentar graças às luzes do seu palácio, que estava bem longe, com certeza os alimentos vão cozinhar nesse fogo, que não está tão longe

            Surpreso com a inteligência de Janot, o rei disse:

-Você ganhou os 100 hectares de terra, Janot! Agora, coloca a panela em cima do fogo, eu e minha esposa estamos com muita fome.

 

 

*baseado no conto “Janot, le cuisinier du roi”, disponível em francês no site http://www.conte-moi.net/contes/janot-cuisinier-roi

 

 

“Ouvi este conto na infância, quando vivia no Haiti. Um professor que morava no mesmo bairro que eu me contou. O nome do cozinheiro era diferente, alguns detalhes também, mas a história era a mesma.”

 

[1] A montanha Laferriére se localiza na cidade de Milot, norte do Haiti. É um ponto turístico e patrimônio cultural haitiano,  considerado a oitava maravilha do mundo

[2] O palácio de Sans Souci foi construído na parte Norte do Haiti, por Henri Cristophe, rei do Haiti. É uma obra grandiosa e suas ruínas são ponto de visita no Haiti. A tradução “Sans Souci” é “sem preocupação”. Foi inaugurado em 1813.

Tezen

         Em um lugar do Haiti, bem no interior do país, longe da cidade, uma mãe tinha um casal de filhos que a ajudavam a cuidar da fazenda. Sempre que mandava a filha buscar água na fonte, ela trazia água limpinha. Já quando seu filho ia, trazia água suja, que ninguém conseguia beber. Sem entender o que acontecia, a mãe perguntou:

- Por que toda vez que a minha filha busca água na fonte ela pega água limpa e você traz tão suja que não serve pra nada, nem pra lavar o chão?

- Mãe, a culpa não é minha! Quando vou na fonte só tem água suja, isso é muito estranho, gostaria de saber como ela faz pra trazer a água limpa!

         Certo dia, o irmão da moça se escondeu e ficou espiando, para descobrir o segredo da irmã . O que acontecia era o seguinte: quando a filha chegava perto da fonte, começava a cantar uma musiquinha assim:

“Tezen meu amigo Zen

Tezen na água, meu verdadeiro amigo”

         Tezen era um peixe que morava naquela fonte. Quando ouvia a canção, aparecia  para conversar e deixava que pegasse a água limpa, que ficava bem no fundo.

         Quando o menino voltou para casa, contou para sua mãe o que aconteceu, revelando que sua irmã era namorada de um peixe que vivia na fonte, chamado Tezen, por isso ela era a única a conseguir água limpa.

         A mãe, duvidando daquela história esquisita, resolveu ver com os próprios olhos o que acontecia. Então, ela mandou sua filha buscar água e a seguiu, escondendo-se no meio das árvores. De repente, a menina se aproximou da fonte e cantou:

“Tezen meu amigo Zen

Tezen na água, meu verdadeiro amigo”

         Como sempre, Tezen saiu para conversar com sua amada e deixa-la pegar água limpa.

         No dia seguinte, a mãe disse aos seus filhos:

- Hoje eu mesma vou buscar água, vocês fiquem aqui.

         Chegando no local onde vivia Tezen, a mãe cantou a mesma musiquinha e o peixe pensou que era a amada, então, saiu da água. Quando percebeu que não era a moça, ficou sem entender nada.

- Te peguei, peixe safado – disse a mãe- agora vou te ensinar a nunca mais seduzir as moças que vêm buscar água na fonte!

         Então, a mãe matou Tezen, pois era vergonhoso que sua filha namorasse o peixe que seduzia as moças. Seu filho ficou contente, pois agora também podia pegar água limpa. A menina ficou brava, pois amava o peixe e adorava ir conversar na fonte de água.

 

*ESTE CONTO POPULAR HAITIANO É MUITO TRABALHADO NA EDUCAÇÃO INFANTIL, NA ESCOLA, COM AS CRIANÇAS

Simbi e o Sapo

            Nesse tempo, os sapos viviam nos rios e nas fontes, com outros sapos e peixes. Todos os animais eram felizes, exceto o sapo  m rayizot, que odiava ruído e tinha um grande amor-próprio. Irritado por ver os animais incessantemente na fonte dele, certa noite aproveitou-se do sono de Simbi, a sereia das ondas, para roubar, a torneia de água. Em duas voltas vigorosas na torneia  ele trancou a chegada da água e a fonte secou. Em seguida, ele se escondeu no portal que dava acesso à fonte, no lugar de Simbi, a guardiã.

            Pocotó, pocotó, pocotó, na bela manhã, o cavalo chegou alegre:

- Toc! Toc! Toc!

- Quem está ai?- perguntou o sapo.

- É um cavalo que quer um pouco de água.

- Vai, cavalo! vai, a fonte secou!- respondeu sapo.

            Sem água, o cavalo foi embora de cabeça baixa, relinchando.

            Có co co có! Galo de briga, sempre fanfarão, chegou cacarejando:

- “Có co có”

- Quem está ai? - perguntou o sapo.

- É o galo de briga que quer beber um pouco de água.

- Vai, galo de briga! vai, a fonte seco!- respondeu o sapo.

- Sem água, fico infeliz e não vou mais cantar! – disse o galo, partindo também com a cabeça para baixo.

            Gruuul grulll grulll! Senhora pomba chegou, em pequenos passos:

- Toc! Toc! Toc! – bateu com seu biquinho.

- Quem está ai?

- É senhora pomba que quer um pouco de água.

- Não tem! Vai embora, vai fazer barulho em outro lugar!

            Sem água, arrulhando tristemente saiu a senhora pomba.

            Simbi dormia longamente enquanto o sapo deixava os outros animais sem água. Quando ela acordou, correu para tomar seu banho na fonte, mal sabia que uma surpresa teria uma surpresa. Nem um som! Nenhum animal por perto e a fonte quase seca.

- O que aconteceu? Onde estão todos os animais e a fonte cheia? – exclamou, fazendo-se ouvir por todos os animais.

- É o sapo que escondeu a torneira de água, enquanto Simbi dormia! Ele mentiu que a fonte havia secado! - gritaram os animais em coro.

            Simbi ordenou o sapo a devolver a abrir a torneira novamente. Então, ela transformou a fonte seca em um lugar lindo com água cristalina. A água se espalhou novamente através dos juncos e pedras brancas redondas. Os gafanhotos cantavam, os animais beberam e muitas crianças foram brincar. Simbi perdoou o sapo, mas com a condição de que ele nunca mais colocasse suas patas perto do rio. Desde este dia, não há nenhum sapo em rios.

 

*Conto baseado em conto haitiano transcrito no site “conte-moi”, originalmente em francês, intitulado “L'enfant Crapaud et Simbi”*

O prato que Bouki não comeu

            Bouki desceu à feira da cidade para vender inhames e conseguir alguns trocados. Andou que andou, negociando aqui e ali. A manhã já estava acabando, os inhames vendidos, tinha sido um dia de sorte, então, sua barriga começou a dar sinal de fome. Foi aí que ele viu um homem velho, de cócoras, ao lado da estrada comendo alguma coisa. O velho parecia estar se deliciando, e Bouki já estava salivando, seu estômago não parava de roncar.

            Bouki tirou o chapéu, se aproximou e perguntou:

- Bom dia, senhorzinho! Ainda não almocei e por isso gostaria de saber onde comprou seu almoço, que parece estar delicioso.

            Mas o velho era surdo. Surdo como uma porta, por isso não ouviu uma só palavra e continuou sua refeição. Impaciente, Bouki disse:

- Não quero seu almoço não, tenho meus trocados aqui, só preciso saber onde é que compro, porque todas as barracas de comida já estão fechadas!

            Bouki falava e falava, perguntando o nome daquele prato, o velho sem ouvir nada... de repente, o velho mordeu uma pimenta forte, muito forte, daquelas que só os haitianos colocam na comida[1]. Daí soltou um grito:

- UAAAII!!!

            Bouki, satisfeito com a resposta, agradeceu e foi pro centro da cidade, em busca do tal “Uai”. Passou de bar em bar, procurou nos restaurante e no supermercado, ninguém nunca tinha ouvido falar nessa comida. Seria algo importado, que só tem lá em  Port-au-Prince[2]? Será que não ouviu direito e o nome era outro? Aí já estava tarde, ele desistiu e resolveu que iria voltar pra casa e fazer sopa de abóbora[3]. No caminho pra casa, encontrou seu amigo Malice, pra quem contou a história da sua busca pelo famigerado prato Uai. Malice, ouvindo atentamente a história do ingênuo Bouki, respondeu:

- Claro, Uai, meu prato preferido! Daqui até a República Dominicana, todos conhecem. Me arranja uns trocados que já já eu trago seu almoço, meu amigo!

            Contentíssimo, Bouki deu o dinheiro e ficou esperando. Dalí cinco minutos Malice virou a esquina, com um saco.

- Tá aqui o seu Uai, no capricho! Mas tem que pegar com cuidado, porque está bem quente.

            Bouki mal se conteve e enfiou a mão no saco e... pegou uma batata

- Isto não é Uai!

            Depois, tirou um ... abacaxi. Olhou franzindo a testa e disse:

-Isto muito menos!!

            Desconfiado, agarrou uma coisa no saco e... era uma laranja!

-Què????? CADE MEU UAI?

            Então, já impaciente, enfiou a mão bem no fundo e agarrou... UM CACTO. Os espinhos fincados na sua mão, ele saltou de dor e de susto, gritando bem alto “UAAAAAAI”. Malice, rindo do amigo, disse, por fim:

- Bom apetite!

 

[1] A maioria dos pratos típicos do Haiti são apimentados.

[2] Por este ser um conto popular do Haiti, faz-se referência a capital do país, Porto Príncipe.

[3] Sopa de abóbora é um prato típico haitiano, equivalente ao arroz e feijão brasileiro, segundo o contador desta história.

Monplaisir

                O rei chorava o desaparecimento do seu animal preferido, um bode que ele chamava Monplaisir. Ele prometeu uma fortuna para quem conseguisse lhe dar informações sobre o desaparecimento. Na verdade, Malice foi o culpado. Ele matou o bode, picou em pedacinhos e comeu.

                Ao saber da recompensa, Malice se apresentou em frente ao rei e lhe deu o seguinte conselho:

 - No momento da oração para Monplaisir, pede para os participantes oferecerem uma canção ou um poema. Você encontrará alguns indícios para esclarecer o desaparecimento de Monplaisir, que você ama tanto. Meu rei, tenha certeza que eu compartilho da sua dor – disse Malice, quem tramava um plano para tirar proveito da situação e de Bouki, seu alvo preferido.

                O rei se interessou pela proposta de Malice, mas avisa:

-É melhor que seu conselho sirva para algo, senão, será castigado!

                Malice então pega a pele que tinha retirado de Monplaisir e faz uma bela roupa com ela. Também compõe uma canção e vai ao encontro de Bouki. Quando encontrou seu amigo, ingênuo, disse:

- Amigo! Vou te contar uma coisa que acabei de descobrir: o rei propôs o mais maravilhoso convite, irrecusável! Quem cantar a mais linda canção composta para Monplasir, seu bode desaparecido, ganha cinco barris cheios de ouro.

-Parece ótimo! – Disse Bouki

-Mas tenho um problema... infelizmente estou com uma forte dor no ombro e nas pernas, mal consigo caminhar. Já tenho uma bela roupa e a canção pronta, mas não conseguirei participar.

                Bouki coça a cabeça, pensa... ele poderia substituir o Malice, em nome da amizade deles e ainda ganhar a recompensa.

- Eu te vendo a roupa por um preço camarada! E, se você ganhar com a canção que compus, eu te dou um barril de dinheiro – propôs o malandro

- Tá bem! Negócio fechado, mas vou em nome da nossa amizade, porque nem sei cantar...

                No dia da oração de Monplaisir, o palácio estava cheio de gente. O rei estava feliz, havia muita carne, porco no espeto, rum e vinho para os convidados beberem.

Bouki estava  elegante com o traje, então se aproximou do rei e começou a entoar sua canção:

“Rei, Rei, Rei, eu ouvi que há uma vigília

E eu não fui convidado.

Para tratar do desaparecimento de  Monplaisir.

Tenho a sua pele nas minhas costas

O couro de Monplaisir nas minhas costas.”

                Todos os convidados olharam para Bouki, giram em torno dele e tocaram a roupa. Na verdade, é a pele Monplaisir! O rei, furioso, ordena a prisão de Bouki, então chegam os guardas do palácio, batendo no pobre Bouki. Sem entender nada, ele tenta explicar:

- Quem me mandou aqui foi meu amigo, eu não sei de onde veio esta pele...

                Malice entrou no palácio e imediatamente gritou para os guardas:

-Quebrem os dentes deste criminoso! Nunca mais o deixem falar!

                Malice, ele recebe cinco barris de dinheiro e tornou-se conselheiro do rei deste país onde a impunidade reina.

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